Por Emerson Siécola e Fabiana Robertoni
Introdução
A Organização Internacional do Trabalho – OIT editou, em junho de 2019, a Convenção nº 190 (C190) e a Recomendação nº 206, ambas sobre violência e assédio no mundo do trabalho (título original “A Global Mandate to End Violence and Harassment in the World of Work: ILO Convention (No.190) and Recommendation (No.206)”).
O propósito da OIT por meio da C190, em sua atividade normativa, é estabelecer o direito a um mundo do trabalho livre de violência e assédio, incluindo a violência e o assédio baseados em gênero (dirigidos a determinadas pessoas ou grupo de pessoas em razão do gênero ou orientação sexual).Importante mencionar que a OIT adota as terminologias assédio e discriminação como expressões conjugadas. Da mesma forma, o faz com a expressão “mundo do trabalho” ao invés de “ambiente de trabalho”. Em resumo, a intenção da OIT é abranger todas as formas, sujeitos e locais que tenham relação direta entre o trabalho desenvolvido e as condutas assediadoras, ampliando-se, assim, o alcance da C190.Trata-se de uma oportunidade histórica para moldar o futuro das relações de trabalho com base na dignidade e no respeito, por meio de uma abordagem inclusiva e integrada, que assegure o direito à igualdade e não discriminação.
A C190 é um tratado internacional vinculante, ou seja, norma internacional que versa sobre direitos humanos. A partir do momento em que o Brasil passou a integrar a OIT, obrigou-se a respeitar e cumprir seus princípios fundamentais.
Como não há legislação própria e específica que trate do assédio nas relações do trabalho no Brasil, a C190, ainda que não ratificada, poderá servir como fonte de interpretação para o incremento da proteção, principalmente nos casos em que os juízes identificarem violação aos direitos consagrados em 8 (oito) convenções fundamentais da OIT (“core obligations”).
Basicamente, as core obligations tratam dos princípios norteadores da OIT e fazem parte do grupo de constitucionalidade que os empregadores devem seguir, como por exemplo, combate ao trabalho escravo, trabalho infantil, discriminação, desigualdade salarial e atitudes antissindicais.
A C190 define violência e assédio como “um conjunto de comportamentos, ameaças e práticas inaceitáveis, seja uma única ocorrência ou de forma repetida, que visam, resultam ou provavelmente resultará em danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos”.
Vale lembrar que as definições nas leis e regulamentos nacionais podem fornecer um único conceito ou conceitos separados.
Novo Conceito
No Brasil, diante da lacuna legislativa, a doutrina e a jurisprudência trabalhista majoritária têm entendido que para se configurar assédio moral, o ato de violência deve ser continuado e repetitivo. O conceito utilizado pelo Tribunal Superior do Trabalho, órgão máximo na hierarquia das cortes trabalhistas brasileiras, define assédio moral como “a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades” (Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral. TST, 2019, p. 6).
Em contraponto à conceituação amplamente utilizada no cenário nacional, a C190 dispõe que a violência e o assédio podem se caracterizar por uma conduta única ou por um ato isolado, ou atos repetitivos, sendo que a natureza e o efeito de tal conduta determinam se ela se qualifica como violência ou assédio.
A quem se destina
As disposições da C190 da OIT são destinadas a todos os setores (público, privado ou terceiro setor), da economia formal ou informal, nas áreas urbanas e rurais.
Quem protege
Trabalhadores formais e outras pessoas no mundo do trabalho, independentemente de sua situação contratual:
- Empregados (CLT);
- Trabalhadores que exercem cargos de chefia ou gestão;
- Trabalhadores autônomos;
- Trabalhadores independentemente de seu status contratual;
- Pessoas em treinamento, incluindo estagiários e aprendizes;
- Trabalhadores despedidos;
- Voluntários;
- Candidatos a emprego e aqueles com processo de seleção em andamento; e
- Terceiros.
Quando e onde pode ocorrer a conduta abusiva
Outra posição relevante do instrumento convencional foi a ampliação do conceito local e temporal do ambiente de trabalho. Assim, estão tuteladas situações de assédio ou violência:
- Nas fases pré-contratual, contratual e pós contratual;
- Durante ou fora da jornada de trabalho;
- No local de trabalho ou fora dele;
- Em espaços públicos e privados, locais de trabalho;
- Em locais onde o trabalhador é remunerado, durante os intervalos;
- Em refeitórios, vestiários e sanitários;
- Em deslocamentos, viagens, treinamentos, eventos, atividades sociais relacionados ao trabalho;
- Em acomodação fornecida pelo empregador;
- Trajetos entre casa e local de trabalho; e
- Nas comunicações relacionadas com o trabalho, incluindo as realizadas por comunicações em ambientes virtuais.
Espécies de Violência
As codutas lesivas e violadoras das disposições convencionais abrangem um rol extenso, como:
- Violência Sexual;
- Assédio Sexual;
- Violência Doméstica;
- Violência Física;
- Violência Psicológica;
- Assédio Moral;
- Violência Estrutural;
- Assédio Organizacional;
- Assédio Virtual (cyberbullying);
- Violência de Gênero; e
- Assédio em razão do Gênero.
Conclusão
Como sabemos, a violência e o assédio no mundo do trabalho são inaceitáveis, pois ameaçam a igualdade de oportunidades, são incompatíveis com um ambiente de trabalho decente e caracterizam violação aos direitos humanos. Esse “conjunto”, além de violência e abusos, afeta a saúde do indivíduo, a dignidade pessoal, abala a estrutura familiar e o ambiente social. Ou seja, são práticas incompatíveis em empresas sustentáveis, as quais devem prevenir e combater para, dentre outros objetivos, preservar a imagem e a reputação institucional.
A natureza evolutiva das relações de trabalho deve levar as organizações a considerarem a revisão contínua e permanente de suas políticas internas e práticas nos ambientes de trabalho, inclusive aquelas relacionadas às disposições da C190. Devemos estar preparados para uma nova mudança, a partir da vigência da norma convencional ou da mudança da interpretação jurisprudencial.
Ninguém deveria ter que escolher entre o direito de trabalhar e o direito de viver sem violência e assédio.
Referências:
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção sobre Violência e Assédio de 2019 (C190). OIT, 21 jun. 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C190. Acesso em 18 ago. 2020.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Recomendação sobre violência e assédio de 2019 (R206). OIT, 21 jun. 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:R206. Acesso em 18 ago. 2020.BRASIL.
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral. TST, 2019. Disponível em: https://www.tst.jus.br/documents/10157/55951/Cartilha+ass%C3%A9dio+moral/573490e3-a2dd-a598-d2a7-6d492e4b2457. Acesso em 18 ago. 2020.
Emerson Siécola é Project Leader & Senior Compliance Manager na T4 Compliance. Consultor, professor, instrutor e palestrante sobre temas de Governança, Riscos e Compliance – GRC. Advogado inscrito na OAB/SP desde 1995, 30 anos de experiência profissional, 20 dos quais em Compliance, incluindo o relacionamento com entidades reguladoras e supervisoras, implementação e gestão de Programas de Compliance para empresas dos mais variados portes e segmentos de negócio. Especialista em Política Internacional e Direito Ambiental. Presidente do Comitê de Governança Corporativa da LEC – Legal, Ethics & Compliance e membro do Instituto de Pesquisa do Risco Comportamental – IPRC, Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB/SP Pinheiros, Comissão de Estudos de Compliance do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP e Instituto dos Profissionais de Prevenção à Lavagem de Dinheiro – IPLD. Colaborador das seguintes publicações do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC: Papeis e Responsabilidades do Conselho na Gestão de Riscos Cibernéticos (2019), O Papel do Conselho de Administração na Inovação das Organizações (2019), Compliance à Luz da Governança Corporativa (2018) e Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa – 5ª Edição (2015).
Fabiana Robertoni é sócia do escritório Gambôa Advogados. Advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e inscrita na OAB/SP desde 1993. Especialista em Direito do Trabalho pela PUC/SP e Direito Empresarial do Trabalho pela FGV/SP.